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ALISON

 

Tradução de Ursula Gudmundsen-Holmgreen

 

Chamo-me Alison. E espero ser lembrada por ti, numa noite em que estejas sentado, sozinho, apoiando os braços numa mesa, numa cama ou num muro de pedras, olhando o sol se pôr e o ceu devagar esvanecer da vista.

Pois assim desaparecemos todos nós da vista dos homens. E portanto resta algo. Se não na memória, então dentro daquele escuro por onde tudo se vai e nada se perca. A história que vou contar se deu numa das minhas vidas prévias, fáz vários centenários.

Naquela época eu era a mesma que sou agora. Mas as circunstâncias foram diferentes. E as circunstâncias importam bastante. Tudo sucedeu-se muito longe daqui, numa terra distante. E no fim a casa inteira se desmoronou em cima das nossas cabeças. Mas que importância tem isso, comparado às confusões que o amor de toda maneira introduz na vida da gente.

Fui mulher casada. Meu marido, Thomas, tinha 54 anos. Em compensaçao tinha eu apenas 27. E isso foi - por incrível que pareça - uma circunstância feliz que criava harmonia em nossa relação. Ele tinha a experiência, e eu estava aberta para tudo que a experiência poderia trazer - e inclusive eu mesma não estava sem experiência nenhuma.

Meu marido era carpinteiro, talvez nenhum bonitão, mas rico e forte. Nem chôro nem riso podia amaciar os músculos de seu rosto. Mas de que me importava se ele tinha dificuldade em mostrar seus sentimentos. Me bastava que ele cuidava de sua propriedade - da carpintaria, das suas vastas terras e - naturalmente - de mim, com jeito e consideração.

Já que eu mesma não fui de nenhuma família de gente fina, me sentia feliz e orgulhosa por Thomas ter escolhido a mim para sua esposa. Ele ergueu-me para sua posição social, e - melhor ainda - as mãos dêle quase que podiam envolver meu corpo todo. Não era uma sensação de todo mal. E por cima aquilo tudo formava a base de gerar grandes gerações.

Thomas tinha, pelo que parece, apenas uma grande falha. Ou talvez nem era em si uma falha, talvez se devia mais às circunstâncias - sim, aí vêm elas de novo - que tudo saiu tão errado: Ele às vezes ficava com tanta raiva que a cólera dêle escapou de seu próprio contrôle.

Talvez se devia à sua innocência que ele tão facilmente chegava ao ponto de perder o juizo. Pois Thomas encarava o mundo de coração aberto e porisso difícilmente se conformava se o mundo não mostrava a mesma flexibilidade quanto ele. Então se podia achá-lo no meio dos campos, brigando com a própria natureza e xingando nosso Senhor pela maneira que deixava ou não deixava a chuva chover.

"Então, o Senhor talvez nem sequer pensou em deixar chover nesta primavera - enquanto na primavera passada você até deixou tudo inundado de tanta água. Mas agora, hein, sequer uma gota, sequer o bastante para um pobre infeliz molhar a boca, hein! O que nos resta da fé, se nosso Senhor nem sabe governar seu ceuzinho de nada, mas se ele não quer, fique sabendo que vou EU!"

E assim por diante, sem parar. E tivesse o bom Deus não tido a capacidade de se fazer surdo diante das lamúrias humanas, creio que as explosões de Thomas teriam deixado nosso Senhor numa depressão enorme e constante. Mas o Senhor se manteve quieto, o Senhor sofreu em silêncio. E assim que Thomas percebeu que o Senhor não ia responder mesmo, ele pegava uma de suas ferramentas, um arado ou uma grade, a tossia para o ceu, e a arrebentava contra o chão, de tal maneira que a ferramenta no final estava em mil pedaços e nem servia de lenha para o fogo.

Assim a raiva de Thomas sempre acabava causando danos para ele mesmo. Invariávelmente ele ruinava os seus pertences, ou até feria a sim mesmo. Mas a destruição que ele causava nunca chegava a tal ponto como no final, quando vimos a casa desmoronar-se, porque as circunstâncias se tornaram estranhas demais.

Mas algumas vezes ele só escapou da morte por um fio. O pior de tudo foi uma vez que ele foi ao poço tirar um balde d’água. Este acontecimento merece ser contado agora porque mais tarde tornaria-se muito importante. Thomas sempre suava muito, e era um dia quente de verão. Ele estava com sêde e precisava bastante de um gole de água. E então assim que está para pegar o balde - arrebenta a corda e o balde cai no poço de novo.

Aí está então Thomas de sêde e mãos abanando, e ele enlouquece tanto de fúria que se joga atrás de balde, poço abaixo, xingando e gritando para o balde de voltar imediatamente, com água e tudo, e isto já!

Não fôsse a gritaria dele, creio que tivesse se afogado naquele dia. Mas todo mundo na fazenda o ouviu, e conseguimos logo o tirar do poço. Daquele dia em diante ele sofreu um pouco do coração, e parecia um pouco mais introvertido. Ficou com medo d'água.

Thomas temia o fogo também, mas era porque, ainda garoto, uma velhinha lhe contou que o fim do mundo viria em forma de um incêndio enorme, que se daria antes que ele envelhecesse. E agora ele tinha 54 anos, e volta e meia sentia dores no coração. Era uma sensação, ele disse, como se o coração tivesse dado uma volta para o lado errado, e nunca mais voltou totalmente no lugar. Era uma sensação, disse ele, de envelhecer.

Mas no resto a gente se dava bem um com o outro. Thomas e eu ficavamos horas a fio na cama. Alí ele se sentia jovem de novo. Alí ele era um homem jovem. Devoto e sem limitações. E ele não se apressava em nada, era um amante atento, muito atento na nossa brincadeira. Como se o mundo exterior não existia. Era a arte mais sublime dêle.

Mesmo assim acabei me apaixonanda por um outro. E no ato um terceiro apaixonou-se por mim. Paixão é coisa contagiosa - dois homens te acha bonita, e de repente todo o mundo quer te possuir. Mas eu não amava aquele terceiro, ele me deixava indiferente. William porém, tornou-se minha grande paixão naquela primavera.

Obviamente eu não queria me apaixonar. Eu me sentia bem e meu convivio com Thomas satisfazia todas as minhas necessidades. Era paixão que queria a mim, e eu não conseguia resistir. Eu só tinha uma vida - isto pelo menos pensava - e eu não consegui resistir a parte alguma da sua doçura. Ainda mais pensei que a primavera também era parcialmente culpada.

Ou talvéz eu simplesmente estava tão louca de paixão, que fazia tempo que eu desisti de penser, e meramente me enchia de vontade de possuir algo que já tinha se tornado parte do meu coração e da minha razão se evaporando. Era uma loucura - uma loucura gostosa - e eu não conseguia mais me preocupar.

Mas não era facil, pois o Thomas estava sempre na casa ou bem perto dela. Alí ele tinha seu trabalho. E era a maneira na qual ele podia sentir-se seguro de que nada de imprevisto poderia me acontecer.

Pois é assim - quando uma mulher seja a propriedade do homen que a ama, este homen sempre vai restringir seu livre acesso às outras pessoas. Todos temos no fundo um grande medo de sermos abandonados. Porisso eu o entendo bem. Também na época entendi ele. Mas me deixei arrastar por meu pobre coração que exigia de nós achar uma saída esperta. Precisavamos de um plano.

William não era apenas um homen maravilhoso, etcetera e tal, bonito e com olhos azuis do ceu, ele também era o homen mais paciente da face da terra. Ele sabia que mesmo o plano mais perfeito exigiria de tempo para ser realizado. Pois bem - ele se deu o tempo então. Mas eu estava impaciente. Eu não podia esperar muito mais. Porisso pedi-lo apressar um pouco aqueles planos.

Tornamo-nos tão íntimos, passamos todos os dias pertos um do outro. Estavamos bem consciêntes de que ele só estava alí de passagem, e sabiamos que a partida dêle se daria em pouco tempo. Mas tinhamos parado o tempo. É possível isso - parar o tempo - mas o tempo continua mesmo assim e acaba nos levando até um ponto em que nunca pensamos chegar.

William era um "profissional" caminhante, e para falar a verdade acho que caminhou por muitas camas de mulher. Acho que não era carpinteiro nem um pouco. Mas tinha uma abilidade para com a madeira que o Thomas não resistia. Eu admito que era a mesma sensibilidade nas suas mãos que eu não resistia. Thomas o contratou por meio ano, pois estava exatamente precisando de alguém que sabia recortar a madeira. Isso o William sabia, e ele ficou acomodado num quarto no sótão.

Eu não podia ir lá, evidentamente. Mas William tomava todas as refeições na nossa mesa, enquanto contava as aventuras das suas andanças pelo mundo. Contava das pirraças que andava fazendo com Deus e Diabo, e sobre suas perambulações bárbaras nas selvas e desertos do mundo.

Sempre ficava comendo aos poucos enquanto contava suas múltiplas experiências. Ele falava nossa língua com dificuldade, mas tinha muita vontade de aprender a falâ-la melhor. Porisso ninguém achava estranho se eu ficasse sentada na mesa para continuarmos a conversa - mesmo depois da comida ser tirada.

E quando Thomas tinha se retirado para fumar seu cachimbo, William também ensinou a mim algumas palavras da sua língua. Foram palavras diferentes daquelas que empregava para contar das suas experiências nos lugares diversos do mundo. Foram palavras que ele empregava para contar-me coisas de mim mesma. Assim foi que me apaixonei per ele. O idioma dêle realmente tinha algo de não sei o que.

É fato consumado que duas pessoas não conseguem se apaixonar sem que todo o mundo perceba. E William não podia me contar essas coisas todas, sem que depois eu ficava radiando das besteiras que tinha me dito.

Mas Thomas não se alarmava. Em cada segundo do dia ele sabia exatamente aonde me encontra. Ele conhecia todos os meus passos do dia inteiro. Come ele sabia também o número exato de dias que ainda restava para William na casa. Thomas estava, sem dúvida, com o bôlo e a faca na mão.

E Thomas achava bom para mim tomar conhecimento de outros povos e países estrangeiros e distantes. Ampliar o horizonte sempre educa uma pessoa - disse ele.

Na sua língua e na minha William então me contava das coisas que ele tanto gostava em mim. William me achava bonita. Sobretudo ele adorava a passagem do meu nariz às bochechas. Não se cansava da elaboração das minhas orelhas - só de falar sobre ela fazia titilar meus ouvidos. Segundo ele, a curva da minha nuca apenas era ultrapassada por minha linha dorsal. Essa linha era a coisa mais linda que já viu. Ele disse coisas assim. Não dava para agüentar.

Inventamos desculpas as mais esquisitas para podermos ficar rodeando um em torno do outro, como duas planetas enlouquecidas. Eu tomava conta de deixar cada vez mais do meu corpo visível para ele. E ele tentava por sua vez mexer, cada vez mais, com aquilo que via. No final, eu não agüentava esperar mais. Uma coisa é explodir em mil ativididades numa cama, outra coisa é ser sufocada devagar pela fumaça que sobe de um fogo mal-feito. Uma coisa é afogarem-se juntos num prazer delirante a dois, outra coisa é sentir-se miserável, sózinho na espera, sem ter coragem de acreditar na consumação adequada do amor.

Eu ainda precisava saber, se William gostava de mim no duro. Quem sabe se ele estava apenas brincando comigo. Quem sabe se para ele bastava mexer com o fogo. Quem sabe se na verdade nem me achava bonita, mas simplesmente fácil de enganar. Eu só podia falar por mim mesma: eu o queria.

Na mesma época eu sentia - por incrível que pareça - uma ternura por Thomas cada vez maior, e experimentava também uma satisfação sempre maior quando faziamos o amor. Paixão já não era mais - era algo além da paixão, que nos atava um ao outro, de maniera irremediável, atado esse que duraria até no próprio caos.

E ao mesmo tempo então eu me sentia impulsionada para frente, na caça do sangue vermelho de William, sem que meu coração se rasgava. Eu queria cantar e rolar com ele num entendimento selvagem. Os sentimentos pelos dois conviviam lado a lado no meu coração, e eu só ficava estranhando. Ambos os sentimentos faziam parte de mim, me pertenciam inteiramente, e eu queria tudo. Não tinha de escolher.

Fui uma mulher feliz. Dois homens me desejavam e enchiam o espaço inteiro do meu coração. Eu andava numa expectativa doce, apenas esperando a consumação. Mas já estava chegando a hora, pois estava se findando o tempo que o William ainda passaria conosco. Porisso deixei-lo entender que mesmo a maior paciência chega a um fim, e que as circumstâncias exigiam dêle que partisse para ação.

Naquele momento William não sentia muita vontade de prosseguir seu rodeio pelo mundo. Mas fazia tempo que o Thomas deixou entender que assim que acabava o trabalho, acabava também seu tempo conosco. Foi aí que William bolou um plano que nos daria uma noite juntos.

Óbviamente, o plano tinha um êrro grave desde o início: era apenas uma noite que ele nos garantia. Mas fora isso, achei o plano legal, como também disse ao William. "Lógico," disse ele, "se eu não fôsse capaz de enganar um carpinteiro, não valesse para nada toda a minha experiência." Claro que isso não era uma fala bonita, e foi naquela hora que percebi que provávelmente ele possuia talentos secretos, escondidos até então. Eu talvez o tinha sonhado menos safado do que era de fato.

Mas naquele momento o que importava para mim era que aquilo parecia uma confirmação de que ele realmente gostava de mim. E meu amor por ele tinha se intensificado, calma e seguramente. Isto nunca foi a minha intenção, e no pior dos casos este amor louco acabaria engendrando muitos e grandes destúrbios.

Já tinha contado a William a piada sobre Thomas pulando atras do balde para o fundo do poço. Porisso o plano tomou como ponto de partida o medo que Thomas sentia por fogo e água. Numa bela noite de sábado, no mês de maio, inauguramos o plano. Era na janta. Estavamos apenas nós três em casa, e as circumstâncias foram as melhores possíveis.

William não tocava sua comida, apenas ficava meio deitado, se apoiando na mesa, e nos olhava com um olhar de doente. O riso de safado e sua alegria espontânea tinham sumido por completo. O rosto dêle tinha assumido uma côr cinza, e ele parecia estar prestes a cair em lágrimas a qualquer momento. Mesmo que eu ficava pensando que o terror não era tamanho, até que eu mesma quase ficava aterrorizada. Thomas, por sua vez, estava de um humor ótimo devido ao bom tempo, e porisso demorava em entender que algo estava errado.

Apenas depois do William já ter empurrada a comida para o lado muitíssimas vezes, e só depois que ele afinal teve êxito em parecer a própria Morte em pessoa, Thomas deixou-se impressionar. Thomas olhou para ele e perguntou o quê ele tinha. William disse que não tinha nada não. Então o Thomas disse que sim, que óbviamente tinha algo com ele, sentado assim deste jeito e parecendo a Morte em pessoa. Aí o William disse que estava triste porque ia nos perder de uma maneira tão cruel.

Pensando que William estava falando da sua partida próxima, o Thomas bem que achava que havia maneiras mais crueis que essa, de perder os amigos. "Não é na minha partida que estou pensando," disse William. "Também não vamos pensar nela agora," disse eu. E eu não disse mais nada. "Está pensando em quê, então?" Thomas perguntou.

O olhar de William tinha um jeito de funeral, de maneira que eu até me sentia angustiada de novo. "Estou pensando numa profecia - já faz demasiado tempo que tomei conhecimento dela," falou ele afinal, enquanto a tontura do horror me engolia, "mas na qual não tenho vontade de pensar." - "E o que pode ser isso, então?" - "Eu não devia ter tocado no assunto." - "Bobagem, homem, agora você nos suspendeu no ar - terá que nos puxar para o sol firme de novo." - "Mas aí está exatamente o problema," William disse, "pois eu não sei fazer milagre. Sou apenas um ser humano."

Soava tão sério e tão terrível que quase me arrependi de termos bolado aquilo tudo. E na medida que William ia desenvolvendo aquele inferno que viria, Thomas também se tornava pálido e deixava a colher para o lado.

"Três anos atrás," William explicava, "bem lá no sul, encontrei um homem que tinha muita fama. Já tinha predito um grande terremoto e três abalos menores, que em soma custaram a vida de dez mil pessoas e destruiram 25 aldeias. Porisso o povo tinha uma admiração incrivel por ele."

William precisava engolir um pouco de saliva para poder continuar: "Aquele homem tinha um livro secreto. Nele estava escrito tudo que valia saber sobre os astros. E naquele livro ele então via o fim do mundo se aproximando, e também via que o fim se daria ou por fogo ou por água. Inclusive sabia predizer o exato momento do fim do mundo, com uma margem de apenas uma hora - ele se daria em exatamente três anos. A destruição viria à terra num espaço de uma noite longa, e na manhã seguinte não existiria nem fragmentos de nada, e o tempo teria parado."

"Quer dizer que estamos falando da noite de hoje," Thomas perguntou, "logo a noite de hoje, com o sol se pondo e os campos respirando paz?" - "Só não falei mais cedo, por sentir tanta pena," William disse com chôro na voz, "e tampouco eu pude acreditar na profecia. Mas agora vejo que a profecia se realizará, sim." - "Mas porque?" - "Pois ele não disse expressamente que viria na noite de um dia extraordináriamente bonita de maio?" - "Disse mesmo?" A exclamação escapou da minha boca. "Sim," William disse e olhava para mim, "até usava a expressão "uma noite onde os campos respiram paz"."

Pelo visto, Thomas queria ter engolido sua própria língua por justamente ter empregado as palavras ligadas ao destino. "E no dia seguinte," William concluia a profecia, "viria uma grande e terrível eclipse do sol, mesmo que pelo jeito não sobrará ninguém para vê-lo, a não ser os peixes mudos dos mares fundos e os lagartos da praia."

Thomas estava com um nó na garganta, e as palavras só lhe saiam da boca com dificuldade. "Aquele homem então achava que não sobraria nem fragmentos de nada - tampouco da raça humana?" - "É o que não podemos saber." - "Podemos não?" – "Claro que não, pois não sabemos se o fim se dará por fogo ou por água - só sabemos que será por um dos dois." - "Mas faz alguma diferença isso?" - "Claro que faz diferença," William disse de um jeito tão manso que eu sentia um calor me percorrendo o espinho, "se fôr por fogo não tem como se salvar."

Thomas o olhava de boca aberta por um longo tempo. Piscava nervosamente os olhos e esperava por mais informações. Mas William estava com uma cara de "caso encerrado". "Mas -" Thomas disse então. "Mas o quê?" William perguntou de volta. "Mas, se fôr por água?" William fitava o Thomas com um olhar pensativo e também reconhecedor. "Se fôr por água, os mais espertos sobreviverão," disse ele.

"Sei," Thomas disse, a voz rouca de emoção, "Noé o fez." William acenou a cabeça. "Era exatamente o que fez!" - "Mas uma arca!?"

William sacudiu a cabeça. "O sábio lá no sul me revelou como - mas se vocês passem isso para frente, o castigo de Deus será terrível - me revelou que no caso de um dilúvio, alguns poucos escolhidos se salvarem com um pouco de esperteza e jeitinho, e sem uma arca."

E ele explicava que tudo o que se precisava fazer era suspender das vigas do teto - ou da casa ou do celeiro - um número de barris, correspondente ao número de pessoas a ser salvos. Cordas bastante fortes segurariam os barris, que seriam abastecidos com comida e bebida, o suficiente para sete dias. Alí devia-se pernoitar, cada um no seu barril. Seria preciso levar consigo também um bom machado. Na medida em que as águas subiriam, cada um pegaria seu machado, cortaria as cordas do barril, e se deixaria levar pelas ondas e correntes da água.

"Depois de passar sete dias a água vai ceder de novo, e será possível desembarcar sem sequer molhar os pés, pode ser que não seja aqui, no próprio campo em frente da casa, mas muito longe daqui tampouco será, pois não haverá nem um vento nestes dias."

Agora, de machados e cordas Thomas entendia, ficava acenando a cabeça a tudo isso e achava se capaz de resolver o negócio para a satisfação de todos. Não seria deste jeito que o apanhariam de bunda para fora.

"E tem mais," William continuava, e agora olhava só para mim, "existe um método de se saber de antemão se aquele negócio dos barris de fato seja o arranjo apropriado - ou se toda nossa esperança seja em vão. Pode-se saber de antemão se o fim se der por fogo ou por água - é questão de conhecer o método." - "E ele sabia o método, aquele seu homem lá no sul?" - "Ele o conheçava." - "E você, você o conhece?" William acenava a cabeça. "O que você quer para revelar o método." William não queria nada, apenas pediu ao Thomas que fôsse buscar dois ovos.

Ai, como o medo, quando pega, sabe governar as pessoas. Quando Thomas retornou com os ovos, William o pediu para ficar bem no meio da sala, prestando bastante atenção. Era para ele jogar primeiro um depois o outro ovo para o ar. Mas com a maior delicadeza possível. Se os ovos se quebrariam ao cair, o fim do mundo se daria por água. Se um dos ovos ou ambos se mantiveram inteiros ao cairem, se daria então por fogo.

Thomas tomou sua posição no centro da sala, se concentrou enormemente, e aí ele jogou, com um movimento delicado e suave, os dois ovos para cima. Primeiro um, depois o outro. Atentamente ele acompanhou a queda dos ovos para o chão. Os dois quebraram.

Lá fora a noite vinha caindo, o pôr do sol estava muito bonito. Toda a paisagem tinha um tom dourado. Nuveus leves, de cores finas, pareciam grudadas ao ceu. D'Este vinha deslizando um escuro azulado, subindo a abóbada celeste, e na natureza reinava uma calmaria extraordinária.

Mas Thomas de repente estava com tanta pressa, que nem antes, nem depois vi homem tão apressado quanto ele. Toda a responsabilidade por nossa sobrevivência estava com ele, e sozinho encarregou-se de nos fazer passar salvos pelo fim de mundo.

Enquanto isso William, já recomposto, me pediu juntar para nós bastante comida, o suficiente não apenas para levarmos nos barris, mas inclusive para nos fortificar agora, antes dos sofrimentos da noite para vir.

Não tinha a mínima dúvida de que William agora tinha-se recuperado por completo da falta de apetite que manifestava na hora da janta, pois enquanto Thomas arrumava os barris e suspendia-os no lugar certo, mais ajeitava o interior deles, o William ia enchendo a barriga com tudo o que tinha de bom na cozinha - carne, paté, cerveja e muito mais - posso afirmar que for uma refeição substanciosa. E ele provou a aguardente que iria nos acompanhar na involuntária e perigosa expedição pelas ondas. No final ele deu um estalo com a boca: aprovada. E fazendo isso ele me sorriu, me olhou com tanto calor.

Eu, por minha vez, tinha conseguido, bem discretamente, botar minha mão, mesmo que só por um momento, por entre suas pernas, enquanto ia servindo a comida para ele. Era um sinal inocente de que eu estava com ele para o que desse e viesse. Gesto inocente, sim, mas se ele tivesse feito a mesma coisa comigo acho que eu teria causado a revelação de nosso plano todo.

Felizmente ele não se atreveu - ele manteve a cara-de-pau. E quando Thomas retornou, informando que agora já fez tudo o que dava para fazer, William parecia a inocência saciada em pessoa.

Os barris agora penduraram das vigas em cordas grossas, tinha em cada barril um machado, e mais comida e bebida para todos os sete dias. "Agora vamos deixar a salvação mesma por conta de Deus, e no mais confiar no bom senso dos nossos próprios arranjos - somos seres sensatos, não é?" William acenou a cabeça sériamente, apanhou uma última coxa de perú, e interpretou as palavras de Thomas: "Fomos seres sensatos."

Então ele limpou a boca, assumiu a direção e nos guiava para o celeiro, onde os barris boiavam, feito navios enormes, debaixo das vigas. O raciocínio de Thomas tinha sido o seguinte: do celeiro seria mais fácil sair navegando, depois da força d'água tiver aberto o grande portal. A noite já estava quase escuro, mas William nos proibiu rigorosamente de fazer claridade usando fogo. Os dois homens agora decidiram, na maior concordância, que a primeira coisa a ser feita seria ajudar a mim de subir a escada portátil que levava para o barril no meio. Só que esqueceram levar em conta a minha vontade.

Eu por mim tinha decidido que de agora em adiante seria eu mesma que ia manobrar as circumstâncias. Agora, na hora do vamos ver, queria saber o caráter dos sentimentos que William guardava no fundo do coração. Ultimamente ele me parecia esperto demais. Eu queria subir por último - assim a escada portátil ficaria encostado no meu barril! Porisso recusei subir primeiro. Apontei que dos três William era a pessoa mais importante, e porisso deviamos deixar ele, primeiro de todos, a salvação no barril.

Thomas concordava completamente comigo, mas William não, é claro. Ele jurou que tal procedimento seria um absurdo. Mas não teve vez. A devoção que Thomas sentia por ele era grande demais.

Então William não teve outro jeito a não ser subir a escada portátil, como o primeiro. E com uma cara de desespero, ele desapareceu no barril do meio. D'aí foi a coisa mais simples do mundo convencer Thomas - bobinho como era - de que, sendo ele o segundo de importância, devia ele também ser o próximo a subir. Ele me beijou ternamente de adeus, me desejou boa sorte, e desapareceu no seu barril. E eu só podia esperar que William não tivesse ficado de mau gênio.

Então eu mesma escalei para o terceiro barril, e entrando tomei muito cuidade de não fazer a escada portátil cair! E felizmente William teve a presença de espírito de nos implorar - a voz ôca e preocupada - de não perder o juizo, de não nos deixar levar pelo pânico, acontecendo o que fôr. "Tudo sairá bem. Melhor não tocar nas provisões ainda. Se queiram pegar uma soneca, não tem problema, não, fora a falta de confôrto. A natureza nos acordará, quando vier a hora."

Depois disso ele expressou sua esperança mais séria de que em breve reveria os dois, ou - se assim fôsse - no mínimo um de nós. Concluindo, ele disse: "E podem pegar uma boa tragada da pinga, para mais fácil pegar no sono." E então o silêncio reinava no celeiro.

Por um tempo demorado fiquei escutando as agitações leves dos dois homens se mexendo nos barris. E longamente fiquei escutando as batidinhas de meu coração. Batidinhas, apenas, pois as circunstâncias deixaram meu coração calmo e seguro. Ele até alimentava uma certa esperança de que seria possível repetir tudo na noite seguinte - depois de ficar evidente que o delúvio se atrasava um pouco.

Eu percebia também como os dois homens estavam em alerta, tentando penetrar o escuro com o olhar. Thomas, angustiado, na espera do fim inevitável e ansioso de ver se tivera êxito nos preparativos. William, por sua vez, mais interessado em saber quando Thomas afinal se renderia ao sono, ajudado pela aguardente.

Creio que já mencionei a existência de um terceiro homem, que também me admirava. Milton era o nome dêle, e come ele era chato! Ele meteu na sua cabeça que me amava, e nunca questionou a reciprocidade do sentimento. Alguns homens são assim. Mas eu não compartilhava esse seu amor. Afinal - fica impossível se apaixonar por todo o mundo ao mesmo tempo. E todo o jeito do Milton me deixava completamente fria.

Tome aquela noite de delúvio, por exemplo - o Milton meteu na cabeça que as planetas se encontraram na posição exata para o objetivo dêle - de conseguir uma noite de amor comigo. Milton era alfaiate, e inclusive bem capaz com uma agulha. Mas eu não tinha nada a ser costurada, e porisso não tinha culpa nenhuma no que diz respeito aos planos de Milton. E inclusive até hoje eu lavo as mãos em relação às consequências que tinham suas atividades.

No período em que nós ficavamos alertos nos barris, mútuamente na guarda, então Milton ficava andando pelo lado de fora do celeiro, estupefato. Na hora do crepúsculo tinha se escondido por trás de uma cêrca a fim de me espionar, de observar meus movimentos, como também as idas e vindas do Thomas - enquanto, feliz, ele ignorava meu pacto secreto com William. Do seu esconderijo atrás da cêrca, ele observou todos os três entrar no celeiro, para depois não aparecer mais. Nenhuma luz era aceso no celeiro, e depois de um tempinho não ouvia-se mais nada de dentro. Milton não entendia absolutamente nada da coisa toda, ignorante como estava da situação gravíssima em que situava-se o mundo.

Mas o suspeito dêle estava alertado, isso estava. E seu ciúme. Ah, esse ciúme, esse sentimento sujo, desgraçado e degradante - esse ciúme, tão danado em todos os sentidos. Percebendo que seria praticamente impossível para ele aproximar-se de mim naquela noite, Milton dirigia sua indignação aos dois homens. Imaginava que eles tinham combinado desfrutar de mim em conjunto. E que agora estavam lá no celeiro executando o ato conforme combinado.

Convicto de que ele devia fazer algo, ele ficou escutando o silêncio que reinava no celeiro. Não ouvia-se nem uma pallinha se movendo. Toda sua ansiedade de ação se acumulava no peito dêle, ameaçando de sufocá-lo. Será que não fôsse um ronco leve que de tempo em tempo soava no interior do celeiro? Mas não - mais provável o barrulhinho fôsse causado por algo que ficava pendurado e que volta e meia friccionava na corda - será que me tivessem enforcado!?

No momento que tinha pensado isso, ele viu o portão se abrindo, levemente empurrado do lado de dentro, e eu saí para a noite, seguida por William, que cautelosamente, quase com ternura, fechou o portão de novo por trás de nós. E com infinita ternura William então me pegou nos seus braços e juntos deslizamos para o chão. Aí, afinal, Milton percebeu a natureza da trama. Pois lá mesmo, no solo cru, fizemos o amor, sem sequer nos dar o tempo de ver ou sentir nada em nosso redor. Permanecemos lá, deitados juntinhos, por um tempo prolongado, o orvalho molhando nossas faces.

Milton, no seu esconderijo, estava pasmado. Logo ele formou uma nova teoria: William e eu matamos Thomas, e agora celebramos, bêbados de sangue, nosso feito nocivo. Tudo isso ele me contou anos depois, numa outra fase das nossas vidas. Também contou que ficou tão abismado, vendo outros seres humanos se comportando daquele jeito, que decidiu ficar no lugar para satisfazer sua curiosidade. Assim ele - mais uma vez - desistiu de intervir no curso da ação. E sua sensação de sufôco aumentou.

O que na verdade tinha acontecido era - naturalmente - que eu enfim tinha me convencido de que Thomas dormia profundamente. Porém, antes de eu sair de barril, hesitei um instante, deixando a volúpia se espalhar pelo meu corpo inteiro, feito uma onda ardente dos pés à cabeça, certificando-me assim dos meus sentimentos. Então desci a escada portátil, a encostei no barril de William - ele não tinha adormecido, e Deus que o acode, se dormido tivesse - e deixei ele descer para os meus braços.

Ele sorria que dava prazer de ver, e também tinha motivos para riso, já que agora eu tinha declarado meus sentimentos da maneira mais aberta possível. Ele por sua vez mostrou seus sentimentos por tomar a minha mão e me conduzir para o portão, abrí-lo para mim, e me deixar sair primeiro para a noite de veludo.

Pois era esta a natureza do William, e no ato fiquei com dor de consciência por ter confiado tão pouco nêle. Logo em seguida uma sensação calma e segura instalou-se no meu corpo: Tinha feita a escolha certa. Milton jamais me teria tratado com tanta delicadeza. Eu sempre tive dificuldades em me decidir por uma escolha. Mas aquilo que escolher, também o consigo.

Com o tempo William e eu começamos a sentir o frio e a humidade do lugar onde estavamos deitados, e porisso trocamos o chão pela cama matrimonial. Mais cedo do mesmo dia eu tinha arrumado a cama - pensando justamente neste momento - pondo os melhores lençois. Quando chegamos lá, estavamos já completamente despidos - nossas roupas nós nos desfizemos delas ao longo do caminho, formaram uma linha colorida da entrada do terreiro à porta da casa. Fechamos as venezianas, mesmo que Thomas dormia sossegado no seu barril. Pois a noite era nossa, e a queriamos só para nós - sem que ninguém nem nada se metesse no meio - nem as estrelas.

Mas Milton não era nenhuma estrela, e ele ficou de mau gênio. Ficou de mau gênio mesmo. Mas achava dificil fazer qualquer coisa antes de saber onde se localizava o dono da casa. Então ele voltou nas pontas dos pés ao celeiro - de qualquer modo ele não conseguiria ver coisa alguma por entre as venezianas. No celeiro descobriu os três barris, porém sem entender bem o propósito do arranjo. Mas percebeu um ronco leve vindo de um dos barris, e também percebeu que o fato da escada portátil não estar encostada exatamente no barril roncando, tinha rações bem óbvios.

Sentindo o caso um pouquinho mais esclarecido, ele voltou para nossa casa. Com o ouvido colado à veneziana do quarto de dormir, ponderou por um bom tempo a situação toda. Afinal chegou à seguinte conclusão: Em frente a este súbito desvio inesperado do rumo das coisas, o negócio seria tentar aproveitar a situação. Tinha chegado a hora de clamar o direito que ele sentiu que tinha à minha alma e - ainda mais - ao meu corpo. Tinha chegado a hora de entrar em ação e acabar com o sufôco.

Mas antes disso William e eu atingimos aquele confôrto e alegria pelos quais nós ansiamos tanto. E ainda por cima conseguimos - várias vezes em seguida – fazer o eixo da terra mover-se de um lado do firmamento ao outro - e nota bem que só raramente isso acontece para os seres mortais. Realmente não é algo do cotidiano ver as estrelas sairem do caminho para te deixar o lugar. Não esqueça isso, se você um belo dia fôr experimentar coisa semelhante.

Milton então ficava escutando esses distúrbios celestiais, e depois de ouvir o suficiente, não conseguia mais se controlar. Levemente bateu à veneziana. E no ato meu coração deu um salto tremendo - e quase parou de bater. De repente compreendia como Thomas sentia nos piores momentos do seu "reloginho". Depois da cama novamente sossegar-se no universo, ficamos de ouvidos virados para a noite, por um tempo que parecia uma eternidade. Thomas não podia ser. Primeiro: Ele não tinha como descer do barril. E segundo: Por quê diabo fôsse ele bater à veneziana, já que o quarto era dêle mesmo, por assim dizer.

"Abre a porta," alguém choramingou de fora. Soava tão miserável a voz que eu me sentia mais calma. "Abre a porta e me deixe entrar. Sou eu, Milton, e prometo não dizer nada a ninguém." - "Vá embora. Não sei quem estejas procurando, mas aqui não tem ninguém." - "Mas Alison, aqui no escuro está fazendo um frio danado. Sei que você está aí." - "Me deixe em paz, seu safado, não vou abrir, não." - "Ouvi que seu marido foi viajar e que a solidão te atormente."

Com essa última tática ele pensou que faria com que nós nos revelasse. "Será que seja verdade, o que eu ouví - você está sozinha mesmo?" - "Não sei o que ouviu e não te devo resposta." - "Apenas um beijo, Alison. As planetas me mostraram o caminho para você. Um beijinho, apenas." - "Vá para casa e enfie sua linha na agulha, e me deixe para fora de suas "planetas", não te dou beijo nenhum."

Mas ele não perdeu a coragem - batendo nas venezianas. Tinha nos pegado em flagrante, e pensava que nosso destino agora estava nas suas mãos. E aí William ficou tão consternado pelo idiota lá fora arruinando deste jeito nossa lua de mel de uma noite só. E ele me sussurrou no ouvido como ele iria nos livrar do sujeito, e com um sopro ele apagou a vela que iluminava o quarto. "Está bem," sussurrei eu para a veneziana, dirigindo-me a Milton, "você vai ganhar um beijo, mas em com-pensação vai me prometer de me deixar em paz." - "Primeiro o beijo, depois a promessa!"

Eu promití-lo o beijo, e na hora que sentimos que já ele estava lá fora, fazendo bico com os lábios, eu abria com muita cautela as venezianas. E William botou seu traseiro para fora da janela num movimento rapidíssimo. Milton, ainda de olhos fechados, cobria com beijos aquilo que pensava ser meu rosto tão adorado. "Ri-ri-ri" - minhas risadinhas, eu as tinha que abafar por baixo do cobertor - eu achava o trato exatamente o quê Milton merecia. Mas quando Milton descobriu sua cagada besta ele quase engasgou de tanto cuspir, e enraivecido, soltando maldições e palavrões, ele começou a violentar as venezianas.

Era impossível acalmá-lo. Ele apenas ouvia sua própria humilhação que falava para ele em voz alta. A fim de pará-lo, William tinha de abrir a veneziana de novo, com um empurrão forte e de repente. A madeira sólida bateu bem no nariz do Milton, e ele caiu no capim, nariz sangrando. Fechamos as venezianas novamente. Lá fora Milton não disse mais nada. E instalou-se uma grande paz.

Mas eu mal tinha acabado de limpar o traseiro do William - livrando-o da saliva de Milton - quando o cara de novo estava lá fora, batendo para entrar. Realmente não me conformava com a audácia dêle - com quê direito ele me solicitava de tal jeito? "Apenas um beijinho mais, e então eu vou embora." - "Já prometeu que me deixaria em paz." - "Um beijinho, apenas, e nunca vou te aborrecer de novo." - "Mas ganhou um, faz pouco, aquele já não era bastante?"

Mas ele tinha a esperteza de manter a cara de pau - ele continuou fazendo de conta que tinha me pego sozinha. "Eu não sou pessoa de judiar ninguém, Alison, isso você sabe." - "Mas tal pessoa sou eu, seu diabo," William silvava per entre os dentes, me dando um sinal, "e quem não quer ouvir, terá que tomar o quê vier." - "Bem," eu sussurrei pela veneziana, "quem sou eu para te negar algo que lhe foi prometido pelas planetas."

Pois, apagamos de novo a luz, e William meteu pela segunda vez a bunda no ar fresco. Mas desta vez não tinha apenas o escuro lá fora, pois no escuro havia também uma brasa, uma brasa que de repente se transformou em chamas. Milton, esse ser traidoso, tinha se armado com uma acha em brasa, pegada na estufa, e agora ele deiteu uma batida horizontal no traseiro do William - e com tanta força que o sôpro de ar fazia a brasa lançar chamas impetuosas.

Falo a verdade quando digo que jamais ouvi um homem uivar do jeito que William uivou aquela noite. Na minha agonia profunda não consegui imaginar outra coisa senão a de que as partes essenciais dêle agora deviam estar destruidas por completo pelo fogo. Tinha um fedor de cabelo queimado e não sei que mais! E eu dava graças a Deus por não ser minha aquela dôr.

Mas William se lançou na perseguição do alfaiate aos pulos, e no caminho pegou a acha ainda queimando que Milton tinha deixado cair na fuga apavorada. Ele o alcançou logo em frente do celeiro e com um pontapé no traseiro de Milton ele o fez voar pelo portão para dentro do celeiro. Aí jogou a acha chamejante na nuca do Milton cujo cabelo pegou fogo. Só então William correu para a noite na procura de uma água qualquer, por onde afundar seu corpo dolorido.

Aos berros Milton corria em voltas no celeiro. "Fogo, fogo!" gritava ele. E ao mesmo tempo William corria para lá e para cá no escuro sem achar o poço. "Água, água!" gritava ele.

Eu alcancei o celeiro no exato momento que Thomas levantou no seu barril, acordado pela gritaria, e sem entender absolutamente nada. Pelo jeito o mundo agora ia acabar tanto por fogo como por água. Ele deu um grito para o ceu, clamando que isso não correspondia ao acordo. E ao mesmo tempo ele se dirigiu aos dois outros barris - o coitado pensando, Deus o abençõe, que ainda estavamos lá - nos pedindo de mantermo-nos calmos e não perder ânimo. Agora era só seguir ele e seriamos salvos. Escapariamos do fogo, pois deixariamo-nos deslizar para dentro da água e então navegariamos para um lugar onde fertilizariamos um solo novo - então um futuro melhor surgeria para nós. Falado isso, ele começou com toda a força de dar golpes de machado nas cordas que suspendiam seu barril.

Mas ele estava excitado e furioso demais. Não prestava a atenção bastante na tarefa. Duas vezes ele perdeu o alvo, e - na situação crítica do momento - era o que bastava para tornar ele totalmente colérico: "Então uma corda danada dessas não quer se deixar cortar, hein? Uma cordinha de nada, mas vai criar uma cena, acha que vai escapar do machado. E com a corda dos outros é a mesma coisa, parece até conspiração, hein? Os senhores cordas aparentemente não querem que escapamos com vida daqui. Mas se a corda não quer, então vou mostrar a viga quem manda aqui!"

E daí ele atacou a viga com toda a força, e Thomas realmente tinha forças incriveis. Dentro de poucos instantes a viga começou a se entregar, e aí eu a vi quebrar no meio ao brilho do fogo se espalhando na palha. Pois a palha queimava desde que Milton apagou seu cabelo nela.

A partir daquele momento não estou muito certa dos acontecimentos. Apenas sei que Thomas tombou para o chão, enquanto o edifício inteiro desmoronou em cima dele. O barril arrebentou e Thomas rolou para o lado. Milton correu para fora, e eu corri para dentro. Apanhei o Thomas e o arrastei para fora. Ele estava com ambas as pernas e um braço quebrados, e só Deus sabe os danos que tinha sofrido interiormente. O celeiro agora estava transformado num incêndio bravo, e um pé de vente fez o fogo se espalhar para nossa casa e de lá para o estábulo. Mas na hora em que o fogo pegou lá, William já tinha soltado os animais.

Era como se o mundo realmente estivesse acabando naquela noite. No final, pasmados, deixamos aquilo ruir que de qualquer jeito ninguém poderia fazer nada para salvar. Ficamos encolhidos cada um no seu canto e só quando clareava o dia, saimos devagar e com dificuldade por entre os fragmentos daquilo que tinha sido nosso mundo.

Eu estava com essa sensação - que se pode ter em momentos raros - de que nada nunca mais seria como antes. O mundo continuava alí, com sua aurora reluzente, impassível e afável. Mas nós não o conheciamos mais, todos nós perdiamos a noção do quê seria o mundo. Era como se o mundo fôsse uma coisa, que a gente tinha que retomar do começo agora, uma coisa perdida, a ser pegada na mão e tratada com muito cuidado.

E a lua subiu no céu, a lua do primeiro amanhecer, e veja que tinha apenas uma lágrima, aquela que alguns chamam de Estrela d'Alva, e outros chamam de Vênus. Mas eu sei melhor, eu sempre compreendia muito bem o chôro da lua. Ela não suporta de ficar olhando como - incessamente - os seres humanos se despedem um do outro, e de ver a separação de pessoas, que relutam em se separar.

William ficou um tempinho parado, afastado um pouco de nós, num muro de pedras, cercado apenas por dois cavalos e uma vaca - a silhueta dêle muito bonita contra o claro céu matinal. Ele tinha amarrado um braçado de capim fresquinho no seu traseiro queimado. O capim era a única coisa que ele ia levar, pois tudo que possuia no mundo tinha sido destruido - ou por fogo, ou por água. Ele levantou o rosto para o céu, recitando uma rima que guardou desde a infância. E aí percebi seu estado mental:

"Hoje é domingo
Pé de cachimbo
Cachimbo é de barro
Bate no jarro
O jarro é de ouro
Bate no touro
O touro é valente
Bate no gente
A gente é fraco
Cai no buraco
O buraco é fundo
Acabou o mundo!!!"

E aí ele saiu para o mundo, tão pelado quanto na hora do parto, e tão brincalhão como nos velhos tempos quando chegou à nossa fazenda. Ele acenava adeus com as mãos até sair de vista, enquanto berrava para nós - e para toda a redondeza - as suas afirmações incessantes: de que ia nos escrever, de que ia voltar a nos visitar um dia, de que lamentava não poder ficar, pois era isso o que realmente preferiria, e outras coisas mais que se costuma dizer numa situação dessas. Estava tudo bem, eu não tinha ressentimentos. Qualquer viagem tem dois lados, e no encontro já existe a separação.

Mas agora Milton levantou-se de uma mecha de capim murcho, a cabeça dêle parecendo também uma mecha de capim murcho. Todo o cabelo dêle queimou, e ele estava coberto por crostas negras no rosto inteiro. Suas sobrancelhas também foram vítimas do fogo, mas seus olhos brilhantes e safados piscavam para mim. De certo não tinha esquecido os vexames da noite passada só por ter ocorrido um acidente ou dois posteriormente.

Caminhou para aonde estava Thomas e - de maneira meticulosa e com grande cautela - colocou as roupas minhas e as do William numa montinha arrumadinha bem na frente dos olhos surpreendidos do Thomas. Pois era essa a natureza do Milton: Já que ele mesmo não mais se encontrava numa posição de poder fazer algo, ele pensava que Thomas, ciumento como estava, poderia forçar-me a confessar, em visto das provas tão evidentes do meu pecado.

Mas o mundo não era mais o mesmo como antes, Thomas também sentia isso, e Milton logo descobriria que o vestuário abandonado por alheios não tinha mais o mínimo significado. Mas vou sair na defesa do Milton por um momento: Ele estava morrendo de paixão mesmo. Se todos os seus esfôrços não deram em nada, foi apenas por não ser correspondida essa paixão. Se no contrário tivesse sido correspondida, tudo teria sido ótimo, e ninguém teria lhe acusado por absolutamente nada.

Agora Thomas apenas mexeu um pouco com a montinha de roupa - uma mão ele ainda conseguia mover - e aí ele pediu àquele ente vil sair de sua frente e deixar de tomá-lhe a vista. Sem compreender a mensagem, Milton continuava parado alí e apenas piscava um olho. Aí Thomas virou frenético de raiva pela última vez na sua vida. Ou talvez frenético não seja a expressão correta: Com muita calma ele levantava seu punho de "Viking" e o deixava cair na cabeça cheia de queimaduras do Milton. Depois disso Milton ficou sem respirar por um tempo prolongado. Mas sobreviveu, só viria a falecer muitos anos mais tarde e acabou sua vida sendo uma pessoa absolutamente sensata.

Thomas deixou o alfaiate inerte rolar para o lado – já o tinha esquecido por complêto. Se agasalhou num cobertor que conseguira salvar do fogo e sinalava para eu vir e sentar junto a ele. Apenas uma esteira desarranjada de capim e palha e fuligem cobria meu corpo nu, e eu não estava muito certa se ele ia me reconhecer. Mas como ele viu que eu estava meio desolada, tentou me consolar, acariciando ternamente a maça do meu rosto, e então olhava para o céu.

"O quê será, que há com o dia?" indagou ele, "será que o mundo esteja acabando?" - "Não," disse eu, "é o eclipse do sol."

Pois realmente havia o eclipse, e então o quê podia eu falar, senão a verdade? O eclipse foi o único elemento real na história inventada por William. E Thomas suspirou fundo. "Não se preocupe tanto, minha filha, afinal de contas, tudo já estava previsto e determinado na agenda grande de Deus. E mesmo assim, escapamos com a vida."

E ele olhava em torno, na medida em que era possível, olhava com olhos que nada compreendiam, avaliava com perrícia as devastações e a miséria toda - a expressão dêle refletiva.

"Ultrapassando qualquer expectativa, sobrevivemos tanto a tempestade de fogo como o dilúvio. Agora vou dar um consêrto nos barris, e neles vamos juntar os restinhos de comida, que ainda possuimos. Somos os únicos sobreviventes no mundo - como você vê, não tem mais ninguém - e portanto fica o dever nosso de re-povoar a terra. Não podemos saber se teremos êxito nisso, mas pelo menos ninguém vai poder dizer de nós que não fizemos o máximo esforço possível no dia final."

Admito francamente que estas palavras dêle me fizeram chorar. Era tudo uma loucura incrível, mas por outro lado - quê são as loucuras mais incríveis do mundo comparadas às circunstâncias que o amor nos oferece. E eu o amava, ele me trazia para junto de si em baixo do seu cobertor e colocava meu corpo em cima do seu. E lá ficamos deitados consolando um ao outro, enquanto ele trabalhava duro para realizar seus planos de re-povoar o mundo - e eu estava na espera de ver chegar gente para tomar conta de nós.

Se foi então que engravidei, ou se a gravidez se devia ao William, não sei dizer. Apenas sei que uns nove mezes mais tarde dei a luz a um menino, que por sua vez virou o progenitor de uma quantidade enorme de mulheres. E eu sou descendente delas. E eu sou uma delas. Porque senão - de onde teria eu então toda essa minha história?

Mais tarde eu tinha outros homens - nenhum homem é imortal ou insubstituível, e Thomas morreu pouco tempo depois - mas nunca esqueci nenhum dos homens que eu já tive. Eu os vi nas ondas dos grandes oceanos, eu os vi desenhados em silhueta contra a côr clara das montanhas, eu os vi brancos como neve e dourados nos últimos raios do sol, verdes como as palmeiras da noite.

E veja, da lua da aurora caía apenas a mesma lágrima solitária, e aquela lágrima unia em si todas as lágrimas choradas, desde a criação do mundo até este momento, até a despedida que se dê exatamente agora - e que, exatamente agora, gera um novo começo.

 FIM

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© Kaj Nissen 1998
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